Wednesday, April 27, 2005

[‘MEU BEM QUERER NÃO É SEGREDO’]

Me dá licença que estou roendo minha unha. Por quê? Porque não gosto que me vejam roendo as unhas. Eu as vejo roídas, não tem diferença. Tem sim! Ora. Quer discutir comigo, é? Me dá licença logo. Eu olho pro lado. Se vira. (pausa) O vidro. O quê? O vidro, sua coisa, você tá me olhando pelo vidro da estante da copa é? Tô não. Tô de olho fechado. Não mente, porra. Não mente! Não grita você, no meu ouvido surdo! Você sabe que entrou água ontem quando... Eu sei! Eu sei! Me dê licença logo, vai. Você gosta de mim um pouco ainda, né isso? Então me dê um pouco de paz. Paz? É. Pra roer a unha? É. Mas você não tem mais o que ped... Ah!... E o torcicolo que você inventou ontem pra não engolir até o talo era mentira, né? É por isso, né? Não. Não. Eu tô com dor ainda, vê só! Tá virando a cabeça pra roer a unha! Não tô. Tá. Não tô. Tá. Não tô. E quer saber? A onda agora é ser sincero, num é? - É pra mim mesma que o coração bombeia sangue, viu? Sua besta! Como é? Ih... Nada não.

Tuesday, April 26, 2005



olhos nus
olham-nos.



*essa menina tem os olhos de minha Marília.

Friday, April 22, 2005

Mário José de Souza, brasileiro, separado, portador da CI 50489144-7 e inscrito no CPF sob o nº 111889540-78, vem através de seu patrono defender as leis do princípio da isonomia, estabelecidas nos termos da Constituição, (Capítulo I - Dos Direitos e Deveres individuais e Coletivos), no Art. 5º, parágrafo II : “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

O constituinte alega seu direito de conviver com sua esposa, Marizé Antonina de Souza, a qual interpretou mal uma ação cometida em favor de seu trabalho e conseqüentemente visando uma melhoria financeira na sua vida matrimonial, como sendo descaso com suas freqüentes dores de cabeça.

O recorrente diz que foi coagido pela mulher a deixá-la (e às suas dores) e há mais de um mês também tem sua saúde ameaçada. Sabendo da saudade alheia, o mesmo julga necessária a providência atual. Mário possui provas escritas, em anexo, de seu amor e fidelidade e nestes termos,

Aguarda deferimento.


__________________________________
Marizé Nina Cabroxa do Meu Coração

Tuesday, April 12, 2005

[GESTOS ETERNOS]

Era feriado só. Feriado frio, enfadado. Vestido de preguiça, de guarda-chuvas azuis. As camisas quadriculadas no varal, misturadas à vertigem, provocavam-lhe um estado ébrio e hipnótico.

Nem por isso corriam lágrimas. Nem por isso se ouvia a música. Ela desmembrava as palavras que ouvia ao telefone, para ficar com a parte boa das coisas. – Doce. Acaso. Merda. Interessantíssimo. – E, no entanto se privava de qualquer prazer. Era um dia perigoso para prazeres. Eles poderiam impregnar a alma ou cegar os olhos para sempre, já que ali estava a consciência em pessoa, decidindo o que ser e o que não, pela vida toda.

Papo de dia eterno.

Saturday, April 09, 2005

[EU ESCREVO PORQUE ME CONVÉM.]

Porque a dor de convir me vem e me esfola um pedaço da vista. Eu sou errada, sou doida, sou visionária. Sou um instante insignificante numa noite de lua rara. Quando olho no relógio repetidas vezes é porque me esqueço da hora em segundos. Quando me viro sem dizer é porque quero evitar respostas. Evitar-me. - Por me encher de mim repetidas vezes e querer transpor a idéia de ser só. Pensei que por hora me satisfaria se me desse. Mas é tudo repetido, tenho saudades de receber. De pensar sem a obrigação de mover, tentar, expor. Foi caminhando em cima do muro que tive minhas mais nobres revelações. De que minha pobreza me mantém com os pés firmes no chão. Porque sonho me custa caro e meu limite se dá à medida que resolvo querer, quase realizar. Tive certeza de que meu olhar mais cuidadoso capta tanto sentido insano que me envergonho de dever isso ao mundo. Quis parar e viver ali, para não me apressar para o que anseio sem saber. Para não me esquecer do que quero alcançar. Para não deixar que o instante de histeria, de orgulho de mim mesma, de amor próprio fervorosamente acalentado me prive de viver o que pequenamente sou.

Wednesday, April 06, 2005

[DESNECESSIDADE]

O gosto do desgaste ficou. A chuva já tinha pingos-agulha e o vento enrijecia os olhos; meio-abertos, meio-fechados. Infeliz dela que não podia cortar caminhos, ou poupar o tempo que reservara para a distração de estar vivo.

Enquanto se caminha é o coração que sai do (des)ritmo e socorre os vasos dos pés, apressados por não saber à que chão aderir, onde estar parado seguro.

Para um sorriso estavam as lembranças da maneira hilária como aprendera os pronomes oblíquos e a graça de ninguém observar-lhe os trejeitos quando estava só.

Monday, April 04, 2005

[ENTREGADORES DE FLORES]

A outra, a tia da namorada que era prima de segundo grau do inquilino, tinha morrido na primavera. Pobre dela. O jasmineiro no seu quintal tinha criado raízes que quebraram o chão até a porta de entrada para a sala de estar e, embora a poda tivesse sido para não incomodar os vizinhos (que varriam suas flores e punham em sacos de lixo sobre o muro), ele parecia mais ainda viçoso e o vento se encarregava de levar as flores que sobravam no muro, na calçada, no chão, aos lugares de sempre.

Flores mortas não podiam fazer mal à ninguém – e foi na lentidão da beleza que vai deixando a flor num suspiro que ela morrera. Tinha ido com o vento, levar as flores já distantes de sua fonte de beleza e vida, ao chão de pó e cinza de onde viera, para onde tornara.

Calçadas de vizinhos. As flores estão para o piso, assim como a vida está para o vento num fio.