[PERPLEXIDADE]
Casa engraçada. Torta como várias outras dos anos setenta. Aquelas projetadas pelos pais de família. Erguidas pelos camaradas do bairro nos mutirões em dias de sol.
Era uma ironia a beleza dela. O jeito que o vento batia direto na varanda. Os rodapés que faziam ondas sincrônicas no desenho. Os azulejos do banheiro com orquídeas azuis no topo... Naquela casa Dada se sentia bem. Acomodada. Feliz. Até orgulhosa. A cidade não era nenhuma Londres, mas a coisa era a casa.
Por vezes a casa segurou o casamento. Dada tinha medo de perdê-la. Materialista, a mulher. Coisa do signo. Fazia tempo fingia uma paixãozinha bem da fraca, pelo marido. Fazia a social com a vizinhança e gostava quando o genro vinha acompanhado de Frederica sua filha mais velha, almoçar. Era uma festa. Dada gostava de estar com gente jovem. Conversava jovialidades. Sabia dos livros em alta. Da última música que estava na boca de todo mundo. Sabia dos truques para as rugas, que nela haviam começado na terceira década, mas não vingaram. E fazia pratos pouco calóricos que sempre agradavam, dispostos em louça bem fina.
Dada era mulher-osso. Dessas cabeça dura, mau gênio; gostava de provocar ciúmes. Gostava de qualquer coisa que a fizesse ser a dona do pedaço. A dona da casa. De uns tempos pra aquele mês, dedicava-se ao fútil como nunca. Gastava seu salário de funcionária pública, fazendo as unhas, pintando os cabelos, comprando peças caras, que afinavam a silhueta, aqui e ali. As novidades chegavam quase que de enxurrada. As novas cores, os novos acessórios, os novos papos. Entrou numa aula de inglês britânico. Comprou um cachorro para ser seu confidente. Vivia só, naquela casa. Apesar da família. Apesar de Marina e Maria, que trocavam distrações entre si. Crianças pequenas. Dada não tinha aquela paciência de outrora. De manhã dormiam até as nove. Então tomavam café e saiam pelo quintal pra inventar alguma brincadeira. De tarde, a escola. De noite, a novela. Aí havia a reunião da família; todos diante da tevê.
O marido era um tipo esquisito. Tinha o tamanho da porta. Quase dois metros. Homem de poucas palavras, poucos amigos. Demonstrava gostar muito de sua própria companhia. Lia bastante. Tinha um jeito calmo de se irritar – coisa, aliás, que com o tempo foi se agravando, ficando cada vez mais insuportável. Ninguém ‘puxara’ ele. A família toda era de gente falastrona, vaidosa, baixa, reclamona. Pequenas Dadas, as meninas.
Frederica, a primeira, cedo arrumou barriga e se casou. Dezenove anos. Deu sorte, a danada. Rapaz de família bem sucedida, estudante de medicina, pretensão especialista: neurologia. Dada de vez em quando tinha impressão de que teria que se consultar com ele algum dia. Já se sentia perturbada, pouco lúcida e tinha uma enxaqueca que vinha de tempos em tempos, no lugar da sua menstruação, que já não vinha mais. Incrível a regularidade. A mulher fazia tabelinha de sua enxaqueca. Não gostava de abortar hábitos, em situação alguma, então, se manteve como pode. Alternava nos analgésicos. Gostava dos coloridos, mas tomava de todos – “distribuição de renda”, dizia. Nem todos faziam efeito; mas Dada estava num período satisfeito, a dor não mais lhe incutia mau humor e cansaço. O contrário. Lhe tornava mais obsessiva com as coisas de sempre. Mais realizada com o que conquistava. Mais altiva com o que inventava.
Maria era a mais velha das pequenas. Sete anos. Bem invocadinha. Bem sabida. Consumista já. Colecionadora de gibis preto e branco. Amante de maracujá. Nela, a pressão baixa e o sono, não se sucediam. Comia maracujá como as outras crianças comem bolo confeitado. Gostava de ficção científica e queria ser astronauta. Tinha um coração confuso. Um sentimento afetuoso pela mãe, que não arriscava dizer que era amor. Pensava ser assim, porque, de fato, não sabia o amor. Sua vez não chegara.
Marina, menina doce, bem doce. Criança prestativa e atenciosa. Suas notas na escola eram as melhores. Seu cuidado com os dentes também. Da mãe, herdara a mania de superioridade. Já lia alguma coisa, e sempre procurava saber algo mais que Maria. Disputavam todo o tempo. A sabedoria, a malandragem, só não o maracujá. Desse Marina não gostava.
Já Dada era coisa dessa que ninguém entende; vai levando. Mulher inconstante, volúvel, bonita. Da boca dela saiam frases bem feitas, preocupadas com a concordância, com o plural certo pos substantivos compostos. Tinha feito por onde. Tinha orgulho de ser classe média. Se sentia aquilo em que um dia quis se tornar. E no mais, tinha um coração zeloso pelas filhas e pelo marido. Que se desmanchava fácil - nunca diante dos olhos de alguém. Dada era criatura agitada, uma sentimental morna, uma persuasiva nata. Dos olhos dela, se decifrava alguma coisa. Sempre a mesma: perplexidade.
5 Comments:
to be continued.
Excelente, lindo, parabéns.
lcslogan@yahoo.com.br
=o)
.aguardando continuação.
.câmbio.
será que comigo vai ser assim tb?
:0
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