Tuesday, April 11, 2006

- Está bem?
- Não. Mas me deixe assim mesmo.
- Não quer tirar o braço de cima da barriga? Desde ontem você dorme assim.
- Então tira. Mas coloca pra cima. Não quero parecer pralítica.
- Assim você fica bonita. Segurando o cabelo pra não cair na testa.
- Eu não preciso agora.
- Segurar o cabelo? Ajuda com o vento que faz aqui.
- Ficar bonita, Marília. Vê como o resto de mim está acabado. Aposto como a pele do meu rosto está caindo como a de uma velha.
- Não se preocupe com isso. O vigor você recupera logo. É só sair do soro.
- É só sair daqui.
- Otília... Mas nós conseguimos a melhor enfermaria.
- São meus companheiros que não me agradam.
- Aquela senhora do lado está há muitos meses aguardando alta.
- Percebe-se. (pausa) Muda de assunto. Me conta uma história.
- Preciso mesmo. Pra você ter no que pensar se eu for.
- Pra onde?
- Pro purgatório.
- Você não vai tão logo.
- Tomara que Deus me absolva. Tenha misericórdia do muito tempo que eu já sofri em vida.
- Deus não é mau, Otília.
- Mas é justo.
- E até onde vai a justiça?
- Até onde pode.
- Mas não chega à vingança.
- Eu nunca soube, menina. Nunca. Só me preveni.
- Da justiça Deus? Você não tem juízo, Tílha? Que coisa de se fazer.
- Mas tanta gente faz.
- Isso é medo.
- Eu sei.
- Medo sem fundamento.
- O fundamento está justo na dúvida. A vida já vem com tanta incerteza que qualquer um tem o direito.